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quarta-feira, 8 de novembro de 2023

A redação do Enem 2023


           O tema de redação do Enem 2023 apresenta basicamente dois problemas. Um deles é a formulação confusa, o que se pode confirmar por uma simples análise linguística. Se não, vejamos: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. O acúmulo de palavras, difícil de ler e reter, torna complicado selecionar os tópicos principais. 

A ideia de “enfrentar o invisível”, com que o aluno de imediato se depara, é de dificultosa apreensão pelo que tem de abstrato. Piora a situação a sequência fonética desagradável e cansativa decorrente repetição de “alho, ado, ado”, o que entrava a leitura e obstacula a apreensão da mensagem. 

O complemento do termo “enfrentamento”, por sua vez, desdobra-se num conjunto em que aparece três vezes a preposição “de” (da, do, de), o que alonga desnecessariamente o sintagma e é condenado por qualquer manual de estilo. 

A banca poderia ter redigido com mais clareza e eufonia. Por que não, por exemplo: “A invisibilidade do trabalho de cuidado  realizado pela mulher no Brasil: desafios para o seu enfrentamento”? Ainda não é o ideal, mas já melhorava um pouco. 

A despeito disso, não se pode negar que o tema é atual e pertinente. Num mundo em que tende a aumentar o número de idosos, deve-se dar visibilidade ao trabalho de cuidar que esse contingente da população exige. O cuidador (ou a cuidadora) se insere nas famílias para oferecer um tipo de assistência que seus membros, por falta de preparo técnico, são incapazes de dar. É justo então que deixe de ser “invisível” e tenha o devido reconhecimento.

Há no entanto um outro problema na apresentação do tema, que é a indefinição quanto à ideia de cuidado em razão da abrangência dos textos motivadores. De acordo com o primeiro texto da Coletânea, por exemplo, o cuidado não tem como alvo apenas o segmento dos idosos. Estende-se aos que necessitam de apoio devido à imaturidade (como as crianças) ou a algum tipo de deficiência nas áreas física ou mental. 

Um dado que se pode discutir, mas pelo qual a rigor a banca não é responsável, está na inclusão do trabalho doméstico entre as atividades do cuidador. A mãe ou a dona de casa não é propriamente uma cuidadora – no sentido em que se aplica essa palavra a quem presta assistência a idosos, crianças ou pessoas deficientes. 

A discussão sobre o trabalho da dona de casa ficaria mais adequada numa redação sobre o papel da mulher na sociedade. A limitação às tarefas domésticas tem sido confrontada com a sua atuação no mercado de trabalho – uma das bandeiras do feminismo. 

Penso que o sentido lato que se deu na prova ao termo “cuidado” pode ter confundido alguns alunos. De um lado (para os que conseguiram deslindar a formulação), a ênfase no trabalho realizado pela mulher; de outro, a extensão nos textos motivadores (que concorrem para a depreensão temática) da tarefa de cuidar a indivíduos que também podem se beneficiar do trabalho de homens – pois existem “os cuidadores”. A ilustração do quarto texto motivador, por exemplo, não faz nenhuma menção à figura feminina.   

Possivelmente a maioria interpretará o cuidado no sentido em que essa palavra tem sido mais empregada, destacando o papel do profissional (homem ou sobretudo mulher) que ajuda as famílias a tratar dos que, por doença ou idade, não conseguem sozinhos desempenhar as tarefas minimamente necessárias para sobreviver.

A banca deverá estar aberta à opção do aluno. O importante é que ele consiga mostrar as implicações humanas, sociais e profissionais do trabalho do cuidador (ou cuidadora), discutindo as razões da invisibilidade e apresentando propostas para diminuí-la.

2 comentários:

Anônimo disse...

Como ex- professora de Ditatica achei pertinentes suas colações. Com uma pergunta tão generalizada, qual era de fato o objetivo dessa questão?

Rafael Diogo disse...

Chico, está sendo ótimo ler seu blog. Gostando muito e apreendendo também.