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segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Caetano no Enem

 


Uma das questões do Enem 2023 do Enem traz no suporte dois fragmentos de letras de Caetano Veloso. Levado a respondê-la, o compositor disse que todas as alternativas estavam corretas.

Isso curiosamente gerou críticas a ele. Críticas obviamente infundadas. Já houve muitos casos de autores que se saíram mal em provas que avaliavam seus textos. A criação artística tem uma dimensão inconsciente que ultrapassa o domínio intelectual do criador. O artista se guia em grande parte pela intuição e obedece a requisitos estéticos que dão margem a sentidos que muitas vezes lhe escapam.  Caetano afirmou que todas as repostas estavam corretas por ter uma percepção ampla do seu trabalho, que contempla, por exemplo, a liberdade da criação individual (alternativa c).   

Vamos à questão. A maioria dos saites que consultei deu como resposta a letra “b”. Considera que os fragmentos têm comum “a percepção da profusão de informações gerada pela tecnologia”. Será que em comum têm apenas isso? Não vejo, a rigor, referência à tecnologia no Texto I no mesmo nível em que há no Texto II.

A questão apresenta dois trechos do compositor nos quais a oposição cromática associa-se à crítica a dois momentos históricos. Em “Alegria, alegria”, uma das composições inaugurais do Tropicalismo, há uma profusão de cores que se revelam pelo “sol nas bancas de revistas”.  Essa variedade, que enche os olhos do emissor, é o indício de um tempo em que variam as fontes de informação e se coaduna com alguém que segue “sem lenço nem documento”.

Em “Anjos tronchos”, a variedade cromática presente no Texto I dá lugar a um paradoxal “escuro em plena luz”. À luz do sol (“pai de toda cor”, para lembrar outra composição do poeta), contrapõe-se o azul das telas dos monitores, que tende a se intensificar em “azuis mais do que azuis” e reter viciosamente a atenção do usuário.  

Se quisesse, a banca poderia ter abordado a relação intertextual que há entre a composição de Caetano e o “Poema de sete faces”, de Drummond. No mineiro, faz-se referência a um “anjo torto” que manda o eu lírico “ser gauche na vida”. No baiano são os anjos tronchos do Vale do Silício que o intimam a ser “virtuoso no vício” – um paradoxo que expressivamente se reforça por meio da aliteração da consoante /v/.  Tal aliteração, por sinal, é retomada na segunda estrofe com a referência ao algoritmo, que “vende venda a vendedores reais” (atente-se ao homônimo “venda”, que se refere tanto ao ato de vender quanto ao artefato que encobre a visão).

Não há dúvida de que as cores, da maneira como se contrapõem em dois momentos históricos, constituem um “elemento de crítica a hábitos contemporâneos”.  São portadoras de um simbolismo que remete, no Texto I, à preguiça, à saturação, ao descompromisso com os imperativos da realidade (inclusive dos amores, que se mostram inúteis, “vãos”); e, no texto dois, à prisão em que o indivíduo está confinado pelas cegas determinações dos logaritmos.

Há um componente de subjetividade na interpretação que faz com que nem sempre a visão da banca seja a do leitor. Esse, por sinal, é o grande desafio de quem elabora as questões (e também, claro, o de quem se propõe a respondê-las). Para mim, a leitura atenta dos textos remete à consideração da alternativa “a” como válida. Ou, na pior das hipóteses, como também correta.

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