Uma das questões do Enem 2023 do
Enem traz no suporte dois fragmentos de letras de Caetano Veloso. Levado a respondê-la,
o compositor disse que todas as alternativas estavam corretas.
Isso curiosamente gerou
críticas a ele. Críticas obviamente infundadas. Já houve muitos casos de autores
que se saíram mal em provas que avaliavam seus textos. A criação artística tem
uma dimensão inconsciente que ultrapassa o domínio intelectual do criador. O artista
se guia em grande parte pela intuição e obedece a requisitos estéticos que dão margem
a sentidos que muitas vezes lhe escapam.
Caetano afirmou que todas as repostas estavam corretas por ter uma percepção
ampla do seu trabalho, que contempla, por exemplo, a liberdade da criação
individual (alternativa c).
Vamos à questão. A
maioria dos saites que consultei deu como resposta a letra “b”. Considera que os
fragmentos têm comum “a percepção da profusão de informações gerada pela
tecnologia”. Será que em comum têm apenas isso? Não vejo, a rigor, referência à
tecnologia no Texto I no mesmo nível em que há no Texto II.
A questão apresenta
dois trechos do compositor nos quais a oposição cromática associa-se à crítica
a dois momentos históricos. Em “Alegria, alegria”, uma das composições inaugurais
do Tropicalismo, há uma profusão de cores que se revelam pelo “sol nas bancas
de revistas”. Essa variedade, que enche
os olhos do emissor, é o indício de um tempo em que variam as fontes de
informação e se coaduna com alguém que segue “sem lenço nem documento”.
Em “Anjos tronchos”,
a variedade cromática presente no Texto I dá lugar a um paradoxal “escuro em
plena luz”. À luz do sol (“pai de toda cor”, para lembrar outra composição do
poeta), contrapõe-se o azul das telas dos monitores, que tende a se intensificar
em “azuis mais do que azuis” e reter viciosamente a atenção do usuário.
Se quisesse, a banca
poderia ter abordado a relação intertextual que há entre a composição de
Caetano e o “Poema de sete faces”, de Drummond. No mineiro, faz-se referência a
um “anjo torto” que manda o eu lírico “ser gauche na vida”. No baiano são os
anjos tronchos do Vale do Silício que o intimam a ser “virtuoso no vício” – um
paradoxo que expressivamente se reforça por meio da aliteração da consoante
/v/. Tal aliteração, por sinal, é retomada
na segunda estrofe com a referência ao algoritmo, que “vende venda a vendedores
reais” (atente-se ao homônimo “venda”, que se refere tanto ao ato de vender
quanto ao artefato que encobre a visão).
Não há dúvida de
que as cores, da maneira como se contrapõem em dois momentos históricos, constituem
um “elemento de crítica a hábitos contemporâneos”. São portadoras de um simbolismo que remete, no
Texto I, à preguiça, à saturação, ao descompromisso com os imperativos da realidade
(inclusive dos amores, que se mostram inúteis, “vãos”); e, no texto dois, à
prisão em que o indivíduo está confinado pelas cegas determinações dos logaritmos.
Há um componente
de subjetividade na interpretação que faz com que nem sempre a visão da banca
seja a do leitor. Esse, por sinal, é o grande desafio de quem elabora as questões
(e também, claro, o de quem se propõe a respondê-las). Para mim, a leitura atenta
dos textos remete à consideração da alternativa “a” como válida. Ou, na pior das
hipóteses, como também correta.